Nó de mãe

-“Tem um nó bem aqui ó mãe!”.
A menina pára de segurar a boneca sem roupa, e aponta para a região do tórax, mais ou menos um palmo a cima do umbigo e uma polegada abaixo do peito. “-É aqui que dói, bem nesse buraquinho.” A menina não tinha seios, tinha peitos. Chamava-os “peitinhos”. E sentia uma dor estranha bem ali, ali embaixo deles, embaixo dos peitinhos.
“-Eu não comi bolacha escondido de você, nem chocolate, juro mãe, comi só o que a sra me deu”. A pequena gostava muito de doces, muitas vezes se entupia deles até passar mal, aí ia chorando pra mãe dizendo que estava com a barriga ruim.
A mãe apalpou a região onde a filha apontava dizendo sentir dor, mas não encontrou nada. Não era médica, mas sabia se virar bem com sua intuição e sexto sentido. “Olha pequena, tem certeza que é aí que tá doendo? Não tem nada aí onde você tá me mostrando”.
“- Tem sim mãe, é um nó. Eu to sentindo ele, olha...ái! é aqui ó” - e apontou de novo.
A mãe ficou olhando a região, olhou bem pra filha e continuou sem saber o que poderia ser aquilo. Será que teria que consultar um médico? Mas que médico conseguiria tirar um suposto nó de dentro do corpo da menina? “Na minha filha ninguém põe a mão, muito menos um bisturi”- pensava ela com seus botões.
“- Mas como assim um nó?”- perguntava à filha com cara de ponto de interrogação.
“- Um nó ué! Sabe quando a gente não penteia o cabelo e fica cheio de nó? É assim que tá aqui dentro....tudo descabelado e com um baita de um nó.”
A mãe parou e pensou na analogia que fez a menina, para melhor ilustrar o que sentia. E sentiu-se uma péssima mãe. Ignorante. Insensível. Ela sempre sentia tudo que a filha estava sentindo, sentia por ela, como se a dor viesse de dentro. Como se o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado e o bebê estivesse dentro da barriga dela, prestes à nascer.
“- Mas a dor é como?”
“- Ái mãe, não sei explicar, nunca senti isso antes. Só sei que ta doendo muito. Tira ele pra mim mãe, é só um nó!”
“- Como assim um nó?”
“- Um nóóóó!” – e a menina abriu um berreiro de tão incompreendida que sentia-se naquele quarto, com a boneca nua na mão e a mãe do lado sem reação.
“- Vou te levar ao médico, ele deve saber mais do que eu o que pode ser esse tal nó que você ta dizendo que tá sentindo.”
E a menina chorava, chorava, chorava.
A mãe foi procurar o telefone do pediatra, revirou a agenda, as pastas, os papéis grudados por ímãs na geladeira. Eram tantos papéis! Tirou o telefone do gancho e ligou pra mãe, que já estava dormindo e que não gostou nada de ter seu sono interrompido.
“-Mãe?”
“- Isso são horas pra se ligar pra alguém? Eu sou sua mãe, mas imagine só se você ligasse para uma pessoa que não fosse tão próxima, que situação mais desagradável seria...”
“-É que só a sra poderia me ajudar, a menina ta sentindo dor, nem vi que horas eram.”
“- Já passa das nove, com certeza.” -respondeu a mãe com sua aspereza habitual.
“- Tá bem, me desculpe, mas eu precisava ligar...”
“- O que é que foi? O que é que ela tem?”
“- Não sei! ela diz que é um nó na boca do estômago, quer dizer, ela não disse que era na boca do estômago, mas me mostrou onde era e é lá.”
“- É manha, filha. Você também fazia isso na idade dela.”
“- Mas ela já tem seis anos, não faz isso desde os quatro... parece que é verdade.”
“- Então leva a menina no médico.”
“- É o que eu vou fazer e é por isso que te liguei...preciso do telefone do Dr... como é que ele chama mesmo?”
“-Dr. Afonso, Afonso da Costa.”
“- E você tem o número dele aí para me passar? Já revirei todas as minhas coisas aqui e não encontrei o cartão dele.”
“- Devo ter, mas à esta hora, vou ter que acordar seu pai, e você sabe como ele fica bravo quando alguém atrapalha o sono dele.... to te dizendo, essa menina não tem nó coisa nenhuma, ela tem é manha.”
“- Mãe, eu estou dizendo pra sra. que ela tá se queixando da dor, eu conheço a minha filha.”
“- E eu a minha.”
“- O número, por favor.”
“- Ela só quer atenção... seu pai ta aqui do lado se mexendo, não posso mais falar, vou acabar acordando ele.”
“- Mas a menina ta doente! Eu preciso do maldito número! Será que uma vez na vida você pode me ouvir? Que coisa... você me coloca em uma situação terrível- eu te implorando por uma droga de um telefone! Eu deveria mesmo é ter ligado pro Pronto-Socorro.”
“- Então ligue.”
“- Eu não acredito nisso, a sra não vai dar o telefone do médico?mesmo sabendo que sua neta está passando mal?”
“- Eu não vou acordar seu pai. Se ela agüentou até agora, agüenta até amanhã de manhã.”

A filha desligou o telefone sem se despedir, irritadíssima com toda a situação. Ficou pensando em todas as vezes que pediu socorro e a mãe se fez de surda, em todas as vezes que se machucou e a mãe disse que não foi nada. “Não foi nada porque não foi com ela!”- pensava ela, “Aposto que se fosse o meu pai ela já estaria toda se lamentando, pedindo ajuda para meio mundo para ajudar o velho”.
Foi até o quarto da filha e perguntou como ela estava. -“Igual”, foi o que ela respondeu. O nó continuava lá, e ela não conseguia tirar.
“- Mãe, eu perguntei pra Mel (a boneca) se ela já tinha sentido isso, e ela me disse que sim.”
“-Ah é? E o que é que ela fez pra passar a dor?”
“- Ela chamou a mãe dela e a mãe dela curou.”
“- Mas o que a mãe dela fez?”
“- Aí eu já não sei, não perguntei pra ela.”
“- Então pergunte, quem sabe assim eu não posso fazer igual!”
“- Ah mãe, agora ela acabou de dormir, não vou acordar ela pra perguntar isso. Você sabe que ela fica brava quando a gente acorda ela.”
A mãe respirou fundo. Olhou pra filha, para as mãozinhas pequenas da filha manhosa segurando a boneca. Respirou fundo mais uma vez, esboçou um sorriso. Não agüentava mais tudo aquilo, aquele nó que não se desfazia, aquela dor, o mal-estar...
Pegou a menina no colo e deitou-a na cama.
“- Eu não to com sono mãe, eu to com dor, to com nó.”
“- Eu sei filha, mas quando a gente deita e pensa em coisas boas a dor passa.”
“- Mas o que são as coisas boas mãe?”
“- Ué, as coisas boas filha: sorvete, parquinho, recreio, gangorra, cachorro, quintal, lápis de cor, algodão doce, piscina, bola...”
“- E “mãe”?” – perguntou a menina com certo desapontamento.
“- Mãe?”
“- É, mãe. Que nem a vovó Zita.”
“- Por que não que nem eu?”
“- Ué, porque pra você a vovó Zita que é a mãe.”
A mãe não conseguiu responder de imediato, ficou calada por alguns segundos, sentiu um nó bem no fundo do peito, o coração apertado.
Será que a mãe era para ela uma coisa boa na vida? Teria ela algum dia sido boa mãe? E ela mesma, era uma boa mãe? Porque será que a pequena, com seus poucos seis anos, fazia uma pergunta tão complexa como essa?
“- Mas por que você me perguntou isso filha?”
“- Porque eu queria saber se você sente que nem eu.”
“- Sente o quê? O nó?”
“- Não mãe! Parece até que você não fala a mesma língua que eu!”
A mãe ria por dentro da forma como falava a filha, a forma como ela articulava as idéias em palavras, copiando os adultos. Mas disfarçou o riso para não interromper o assunto, a grande questão, a polêmica levantada.
“- Você quer saber se eu sinto o que como você?”
“- O que eu quero saber é se você sente que nem eu.”
“- Filha, você ta fazendo alguma piada com a mamãe? Não to mais gostando dessa pergunta.”
“- Deixa mãe, você não entende mesmo. Nunca entende.”
“- Como não????? Claro que entendo, entendo você mais do que qualquer outra pessoa nesse mundo.”
“- Então porque você ainda não entendeu o que eu te perguntei?”
“- Porque você está sendo muito abstrata.”
“- Abstrata? O que é isso?”
“-Nada, você ta sendo muito pouco objetiva, tá me confundindo.”
“- E o que “abstrata” tem a ver com isso?”
“-Abstrato é uma palavra usada por adultos, é aquilo que não é concreto, palpável..”.
Agora a filha que não entendia a mãe. Pelo menos era o que parecia com sua resposta silenciosa.
“- Então o nó é abstrato?”
“- É, muito.”
“- E você? É abstrata?”
“- Eu não, eu sou sua mãe, de carne e ossos, estou aqui na sua frente e você pode me tocar, sentir que eu estou aqui.”
“- Acho que eu entendi.”
“- Você é muito esperta filha.”
“- Mas então, você sente que nem eu?”
“- Sinto.”- não sabia mais como sair daquela discussão senão concordando com a filha.
“- Ah, que alívio mãe. O nó até parece que tá menos apertado agora.”
“- Eu sei, também to sentindo.”
“- Agora eu to com sono mãe... dorme aqui comigo?”
“- Durmo boneca, só me dá um espacinho.”
“- Ta bom assim?”
“- Ótimo.”
Quando as duas adormeceram o telefone tocou. Meu Deus, quem poderia ser? Passava das dez da noite, ninguém costumava ligar naquele horário. Alguém ligando assim tarde não é bom sinal... ai meu Deus, coisa boa não é.
“- Alô?”
“- Eu acordei seu pai e achei o telefone do Dr. Afonso. Depois você pede desculpas pra ele e explica porque eu acordei ele.”
“- Não precisa mais, ela já ta dormindo e eu também estava.”
“- Não quer anotar já que eu acordei seu pai só pra pegar o maldito número? Parece brincadeira....”
“- Não, já disse que não precisa. Boa noite.”
“- Você é tão orgulhosa...”
“- Boa noite mãe.”
“- Não vai anotar mesmo?”
(Tu-tu-tu-tu-tu-tu-tu.)
Do outro lado da linha a velha falava “Alô? Alô? Mas será possível!”. E, percebendo o que acabara de acontecer , voltava a deitar, só que agora com muito mais mau humor.
A pequena, deitada abraçada com a mãe, murmurou uma coisa baixinho, ao que a mãe pediu que repetisse.
“-O que você sente que nem eu mãe...”
“- Sim minha filha....” – e já começava a pensar em uma noite inteira discutindo com a filha de seis anos de idade o mesmo assunto mal resolvido de outrora.
“- O que é que nós sentimos igual, pequena?”
“- É o amor mãe.”

Comentários

Unknown disse…
ai, alice.....q muito fofo meu.....no final deu até um arrepiozinho...rsrrs
parabéns, você escreve muito bem!
bjos thá

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