MONTE SHASTA
Há uma semana levei um susto daqueles. Queria ter escrito sobre o episódio todo na hora, mas só consegui tempo agora, numa escala de 7 horas no aeroporto de São Francisco.
Pensei em sair daqui e ir passar minhas últimas horas nos EUA com a minha amiga Francesca, mas teria que fazer uma viagem de 1 hora de metrô até a casa dela e voltar pra cá 4 horas depois. Mesmo ela dizendo que me traria de volta pro aeroporto mais tarde, eu oscilo. Tô tão cansada depois de 64 dias de viagem que qualquer pequeno deslocamento me gera ansiedade e uma sequência de medos que me exaurem.
“E se o metrô quebrar no caminho e eu perder o voo de volta pro Brasil? E se o voo mudar de horário ? E se tiver um acidente na estrada e eu me atrasar ? E se eu mesma tiver um acidente ? E se eu perder o passaporte?”
Alguém além de mim sente isso às vésperas de uma viagem ?
Tudo passa pela minha cabeça.
Então aqui resolvi ficar.
Quem me acompanhou nos stories no dia 13/07 viu: eu na estrada, bem ao lado do Monte Shasta, pedindo pra todo mundo me mandar boas energias. Eu nem sabia bem o que eu tava pedindo, mas naquele instante eu só consegui pensar numa força coletiva, numa fé em minha direção. E então pedi, por uma fé que eu mesma muitas vezes não tive.
Eu apareço tanto por aqui pedindo ajuda pra cá e pra lá, mas pra mim mesma, não peço. Peço ? A minha sensação é de que não. Vender minhas fotos não é pedir ajuda. É parte do meu trabalho. Correto?
Naquele dia eu dei as caras e pedi.
E o efeito desse pedido foi algo além do que eu poderia imaginar- as centenas de msgs recebidas e tantas pessoas (muitas que nem me conhecem pessoalmente) torcendo pra que as coisas aparecessem e tudo desse certo pra mim, foi tão surpreendente e emocionante, que eu agora só quero agradecer sem parar. Por tudo. É provável que até que eu me acostume com esse sentimento tão bom, eu agradeça um pouco exageradamente.
Diante da possibilidade dilatada no espaço-tempo de 6 horas e 500 km, de ter que recomeçar tudo, uma mudança radical da narrativa da minha vida acabou acontecendo.
Quando eu parei o carro no acostamento pra fotografar o monte Shasta (uma montanha que é tida pelos povos nativos americanos há milhares de anos como o começo de tudo, ‘a casa do Grande espírito’ e de onde surgimos nós humanos e todos os outros seres) eu estava feliz que finalmente conseguiria fotografar aquele vulcão com a pontinha coberta de neve em pleno verão.
Montanhas cobertas de neve me lembram meu pai que gostava de neve e só viu neve uma vez quando estávamos juntos na Argentina. Eu fotografei ele em Bariloche sentado numa pedra com muitas montanhas cobertas de neve ao fundo. As pernas cruzadas e calçando sapatos que claramente não eram pra neve. Mas ele tava feliz.
Ele adorava a cena de encontros e desencontros da Sofia Coppola onde aparecia o Monte Fuji coberto de neve de uma janela de hotel. Mesmo filme que ele descobriu o duo francês Air e comprou um CD pra mim. Do filme e do Air. Naquela lojinha de CDs do lado da lanchonete Hobby em Perdizes, que ele tanto gostava de ir caçar músicas boas. Meu pai era um homem muito sensível
Hoje, vinte de julho de dois mil e vinte três, faz dezesseis anos que ele se foi. Dezesseis anos que eu assimilo lentamente sua abrupta partida. Dezesseis anos em que busco respostas e conforto para uma dor profunda, que só quem já viveu algo parecido talvez me entenda. Dezesseis anos, que eu vejo meu pai em filmes, em músicas, em sabores, em cheiros e nas linhas das montanhas. E também no formato das minhas mãos e da ponta do meu nariz.
Meu pai está vivo em mim.
E foi ali que dei por falta de todas as coisas materiais mais importantes que eu carregava comigo nessa viagem. Minha câmera novinha em folha, minha lente nova, minha câmera antiga (que também era nova pra mim pq que ganhei de presente no ano passado do Jan) e outras 4 lentes. Meu computador. Meu HD com tudo que filmei e fotografei aqui. O casamento da Francesca e do Ricky. Cartões de memória ainda não descarregados. Uma corrente de ouro cheia de pingentes e patuás feitas pelo meu falecido avô Rubem, onde carregava também um dentinho do meu pai de quando ele era criança e que minha mãe por tantos anos guardou. Meu diário de viagens dos últimos anos. A lista de coisas de valor sentimental era grande. Fiquei até cansada de escrever.
Os primeiros pensamentos foram um turbilhão daqueles. “Perdi tudo. Roubaram. Esqueci na locadora. Vão encontrar. Não vão devolver. Vão devolver. Como vou comprar tudo de novo??? ”.
Naquele instante não tinha mesmo como ter certeza de nada. A única certeza era que eu estava viva, inteira e com saúde. E estar viva é o mais importante.
A gente só consegue resolver os problemas estando viva, inteira e presente.
Ufa.
Eu tô aqui.
Sentada com as mãos no volante, liguei pra minha mãe e pedi pra ela começar a rezar por mim. E pra uma amiga, pedindo ajuda. Eu tava já no final da estrada que liga São Francisco à Ashland, no Oregon. Tentando descobrir se eu havia esquecido a mochila na locadora de carro aqui do aeroporto de São Francisco ou se ela teria sido roubada do carro em alguma parada no caminho. Eu não sabia.
Nas cinco horas dirigidas eu vinha escutando Fogueira Doce do Mateus Aleluia, prestando atenção em cada estrofe cantando alto e com emoção.
Até chorei. Na verdade chorei bastante. Não exatamente de tristeza, chorei de saudade e chorei de emoção.
“Quando eu vim pra este mundo eu mostrei minha cara sem marcar bobeira….
…eu que vinha de outras serras tratando das minhas feridas, trazidas de uma vida aflita, meus traumas Freud não explica …”
Que linda é essa música. Que linda é a voz do Mateus Aleluia. Meus braços se arrepiam e também o topo da minha cabeça; meu coração parece bater no ritmo da música. Eu sou sensível demais . canto em coro com a voz da mulher que canta com ele. Repito partes até decorar a música toda. Cantei meu canto e fiquei por cá.
E apesar do desespero daquele momento, respirei fundo e acreditei que se as coisas tivessem que continuar comigo, elas seriam devolvidas. Acreditei que aquilo naquele momento estava acontecendo por uma razão. E que eu tinha que ser paciente e ter fé.
Foi a montanha que me fez parar e dar por falta das minhas coisas. E foi Mateus Aleluia que docemente me colocou em um estado de presença que me conectava profundamente com as minhas raizes, com a minha alma e dos meus.
Pensei em sair daqui e ir passar minhas últimas horas nos EUA com a minha amiga Francesca, mas teria que fazer uma viagem de 1 hora de metrô até a casa dela e voltar pra cá 4 horas depois. Mesmo ela dizendo que me traria de volta pro aeroporto mais tarde, eu oscilo. Tô tão cansada depois de 64 dias de viagem que qualquer pequeno deslocamento me gera ansiedade e uma sequência de medos que me exaurem.
“E se o metrô quebrar no caminho e eu perder o voo de volta pro Brasil? E se o voo mudar de horário ? E se tiver um acidente na estrada e eu me atrasar ? E se eu mesma tiver um acidente ? E se eu perder o passaporte?”
Alguém além de mim sente isso às vésperas de uma viagem ?
Tudo passa pela minha cabeça.
Então aqui resolvi ficar.
Quem me acompanhou nos stories no dia 13/07 viu: eu na estrada, bem ao lado do Monte Shasta, pedindo pra todo mundo me mandar boas energias. Eu nem sabia bem o que eu tava pedindo, mas naquele instante eu só consegui pensar numa força coletiva, numa fé em minha direção. E então pedi, por uma fé que eu mesma muitas vezes não tive.
Eu apareço tanto por aqui pedindo ajuda pra cá e pra lá, mas pra mim mesma, não peço. Peço ? A minha sensação é de que não. Vender minhas fotos não é pedir ajuda. É parte do meu trabalho. Correto?
Naquele dia eu dei as caras e pedi.
E o efeito desse pedido foi algo além do que eu poderia imaginar- as centenas de msgs recebidas e tantas pessoas (muitas que nem me conhecem pessoalmente) torcendo pra que as coisas aparecessem e tudo desse certo pra mim, foi tão surpreendente e emocionante, que eu agora só quero agradecer sem parar. Por tudo. É provável que até que eu me acostume com esse sentimento tão bom, eu agradeça um pouco exageradamente.
Diante da possibilidade dilatada no espaço-tempo de 6 horas e 500 km, de ter que recomeçar tudo, uma mudança radical da narrativa da minha vida acabou acontecendo.
Quando eu parei o carro no acostamento pra fotografar o monte Shasta (uma montanha que é tida pelos povos nativos americanos há milhares de anos como o começo de tudo, ‘a casa do Grande espírito’ e de onde surgimos nós humanos e todos os outros seres) eu estava feliz que finalmente conseguiria fotografar aquele vulcão com a pontinha coberta de neve em pleno verão.
Montanhas cobertas de neve me lembram meu pai que gostava de neve e só viu neve uma vez quando estávamos juntos na Argentina. Eu fotografei ele em Bariloche sentado numa pedra com muitas montanhas cobertas de neve ao fundo. As pernas cruzadas e calçando sapatos que claramente não eram pra neve. Mas ele tava feliz.
Ele adorava a cena de encontros e desencontros da Sofia Coppola onde aparecia o Monte Fuji coberto de neve de uma janela de hotel. Mesmo filme que ele descobriu o duo francês Air e comprou um CD pra mim. Do filme e do Air. Naquela lojinha de CDs do lado da lanchonete Hobby em Perdizes, que ele tanto gostava de ir caçar músicas boas. Meu pai era um homem muito sensível
Hoje, vinte de julho de dois mil e vinte três, faz dezesseis anos que ele se foi. Dezesseis anos que eu assimilo lentamente sua abrupta partida. Dezesseis anos em que busco respostas e conforto para uma dor profunda, que só quem já viveu algo parecido talvez me entenda. Dezesseis anos, que eu vejo meu pai em filmes, em músicas, em sabores, em cheiros e nas linhas das montanhas. E também no formato das minhas mãos e da ponta do meu nariz.
Meu pai está vivo em mim.
E foi ali que dei por falta de todas as coisas materiais mais importantes que eu carregava comigo nessa viagem. Minha câmera novinha em folha, minha lente nova, minha câmera antiga (que também era nova pra mim pq que ganhei de presente no ano passado do Jan) e outras 4 lentes. Meu computador. Meu HD com tudo que filmei e fotografei aqui. O casamento da Francesca e do Ricky. Cartões de memória ainda não descarregados. Uma corrente de ouro cheia de pingentes e patuás feitas pelo meu falecido avô Rubem, onde carregava também um dentinho do meu pai de quando ele era criança e que minha mãe por tantos anos guardou. Meu diário de viagens dos últimos anos. A lista de coisas de valor sentimental era grande. Fiquei até cansada de escrever.
Os primeiros pensamentos foram um turbilhão daqueles. “Perdi tudo. Roubaram. Esqueci na locadora. Vão encontrar. Não vão devolver. Vão devolver. Como vou comprar tudo de novo??? ”.
Naquele instante não tinha mesmo como ter certeza de nada. A única certeza era que eu estava viva, inteira e com saúde. E estar viva é o mais importante.
A gente só consegue resolver os problemas estando viva, inteira e presente.
Ufa.
Eu tô aqui.
Sentada com as mãos no volante, liguei pra minha mãe e pedi pra ela começar a rezar por mim. E pra uma amiga, pedindo ajuda. Eu tava já no final da estrada que liga São Francisco à Ashland, no Oregon. Tentando descobrir se eu havia esquecido a mochila na locadora de carro aqui do aeroporto de São Francisco ou se ela teria sido roubada do carro em alguma parada no caminho. Eu não sabia.
Nas cinco horas dirigidas eu vinha escutando Fogueira Doce do Mateus Aleluia, prestando atenção em cada estrofe cantando alto e com emoção.
Até chorei. Na verdade chorei bastante. Não exatamente de tristeza, chorei de saudade e chorei de emoção.
“Quando eu vim pra este mundo eu mostrei minha cara sem marcar bobeira….
…eu que vinha de outras serras tratando das minhas feridas, trazidas de uma vida aflita, meus traumas Freud não explica …”
Que linda é essa música. Que linda é a voz do Mateus Aleluia. Meus braços se arrepiam e também o topo da minha cabeça; meu coração parece bater no ritmo da música. Eu sou sensível demais . canto em coro com a voz da mulher que canta com ele. Repito partes até decorar a música toda. Cantei meu canto e fiquei por cá.
E apesar do desespero daquele momento, respirei fundo e acreditei que se as coisas tivessem que continuar comigo, elas seriam devolvidas. Acreditei que aquilo naquele momento estava acontecendo por uma razão. E que eu tinha que ser paciente e ter fé.
Foi a montanha que me fez parar e dar por falta das minhas coisas. E foi Mateus Aleluia que docemente me colocou em um estado de presença que me conectava profundamente com as minhas raizes, com a minha alma e dos meus.
Shasta. Nunca mais vou esquecê-la, mesmo não tendo conseguido fazer a foto que eu tanto queria. Não preciso de foto pra lembrar dessa montanha e desse dia.
Uma amiga me disse - ‘volte pra São Francisco agora, nessas situações você não pode demorar mais nenhum minuto pensando no que fazer. Go get it !’
E eu dizia ‘eu estou 500 Km distante de SF.’ Dirigir tudo isso sem saber se a mochila está lá, pegar estrada à noite, cansada… Isso sem contar que teria que fazer uma conversão proibida e perigosa no meio de uma grande estrada onde fiquei parada por mais de uma hora por conta de um acidente. E acompanhada por um carro que carregava um alce morto na caçamba, com os chifres pra fora.
Decidi escutar minha intuição e seguir viagem pra Ashland, onde Anastatia me esperava, se passando por mim no telefone falando com a locadora para ver se alguém tinha encontrado a mala.
Além de tudo, tinha isso. Meu celular só tinha internet, não tinha número.
Nunca mais compro esse tipo de plano. Eu achava que poderia fazer tudo por WhatsApp, mas estava errada. De agora em diante vai ser celular com número, bip, pager, vhf, fax. Quero todos os meios de comunicação possíveis. E também esses tags de rastrear coisas (que um dia uma amiga me contou que o namorado rastreou ela, sem que ela soubesse. Colocou na bolsa como se nada fosse. Já pensou ?).
Mas isso não é assunto pra agora.
Cheguei em Ashland ainda bastante abalada, querendo estar presente ali mas com a cabeça na mochila. Ligo pra minha amiga Amanda, tão amada, que sempre que estou aqui me recebe com um sorriso enorme e um abraço apertado que só uma brasileira de coração tropical consegue dar. Amanda estava trabalhando, e diz que assim que terminar o expediente vai até o aeroporto pessoalmente verificar se alguém encontrou a mochila.
Um par de horas depois, Amanda me liga numa chamada de vídeo. A ligação falha depois das palavras “Amiga, tô aqui no aeroporto”. Aqueles segundos congelados duraram uma eternidade. Meu coração deve, inclusive, ter parado por alguns segundos. Qual notícia ela me traria ?
A imagem descongela e ela aparece segurando a mochila. Meu coração volta a bater. Grito e pulo de emoção e alegria. Obrigada, Amanda, por resgatar meu baú de tesouros.
Eu precisava então ir buscá-lo.
As coisas estavam lá.
Todas. A câmera nova, a câmera velha, os patuás, meu computador, meu diário. Tudo , tudinho. Existem pessoas honestas no mundo. Existem pessoas maravilhosas. E eu estou sempre muito protegida e bem cuidada por elas e por outras que já se foram. Eu não, nós estamos. Mas às vezes esquecemos ou custamos a acreditar. Reencontrar essa mochila não foi só sorte. Foi um desejo coletivo. Era muita coisa de valor sentimental em jogo.
O resgate da mochila foi outra missão. Porque meu voo de volta pro Brasil saia do Oregon e voltar pra São Francisco significava dirigir 6 horas e pouco pra ir mais 6 horas e pouco pra voltar. Alugar carro de novo. Combustível. Dólares. Não estou reclamando, só estou compartilhando um cansaço acumulado de tantas idas e vindas pra lá e pra cá (que são uma benção mas também são nas idas e vindas que as coisas se perdem e às vezes a alma também - a ponto da gente trocar de nome).
Poucos dias antes disso tudo acontecer, ainda na Califórnia, numa viagem com a Nuria (a dançarina dos ventos e de outros vídeos que eu posto por aqui) comentei em uma das curvas sinuosas que nessa viagem eu havia aprendido a perder coisas. Que perder coisas ao longo do caminho fazia parte. E perguntei, na curva seguinte, se ela estava preparada pra a passagem da mãe, que enfrenta com valentia e sede de vida, aos 90 anos, um tratamento intenso contra um câncer. Depois que perguntei, me arrependi, queria votar pra curva anterior e desfazer a pergunta. Me achei insensível.
E não era a primeira vez que eu fazia essa pergunta, dias antes perguntei pra minha mãe se ela estava preparada pra passagem do meu avô Nacim, que também está lutando contra um câncer, aos 97 anos.
Acho que pergunto isso porque eu não estava preparada pra perder meu pai e nem uma das minhas melhores amigas assim da noite pro dia. Então fico com essa ideia de que as doenças físicas de alguma forma “preparam” o campo pro fim.
A gente nunca tá preparada pra perder as pessoas que amamos, especialmente aquelas que nos trouxeram ao mundo. Tampouco estamos preparadas pra perdermos amigas, amigos, e falar da morte não é muito popular. A gente vive, evitando. Fugindo de qualquer coisa que encoste no fim, ou que sinalize a certeza de que toda vida acaba, que relações findam, que coisas se perdem ou mudam de lugar sem que nunca a encontremos novamente. Quando pessoas amadas se vão é como se uma parte nossa morresse também. Mas ao mesmo tempo, e como já disse antes, é como se elas ainda vivessem em nós.
Vida - Morte - Vida.
Mas voltemos pra Ashland.
Anastatia disse que me levaria até São Francisco, mas não na caminhonete barulhenta e sem ar condicionado que ela usa nessa zona rural que é o sul do Oregon. Ela pede pra avó o carro emprestado e algumas horas depois, estamos de volta na estrada, às 06:00 da manhã. Ana faz burritos pra comermos no caminho e faz dois extras - um pra avó e outro pra uma amiga. Monta um cooler com sucos e coisas geladas e ainda coloca dois travesseiros no banco de trás. Ela que começa dirigindo e sugere uma parada no monte Shasta, pra tomarmos água da fonte mais pura. Água que nasce de dentro dessa montanha vulcânica onde tudo começou.
Finalmente cheguei ao pé da montanha que antes via de longe. Enchemos três galões de água e depois entramos na água- que é gelo derretido e me fez ficar muito brava com a sensação, depois de entrar com os dois pés de uma vez sem prever o choque. Ana da risada e me diz pra respirar no desconforto. Eu não respiro, eu bufo. Depois dou risada.
Seguimos viagem até São Francisco de corpo e alma lavadas. Encontramos Amanda passeando com Chego na rua do lado da casa dela. Acho que minha alegria era tanta que desci com o carro ainda em movimento pra abraçar minha amiga. Resgato minha mochila, abraço e agradeço.
Esse reencontro foi definitivamente uma força coletiva.
Antes de pegarmos a estrada, demos uma paradinha pra vermos o mar. Caminho em uma colina, com a mochila agora nas costas, sentindo o frio da neblina e do vento no peito. O mar não aparece à distância e mesmo me aproximando da beira da colina eu mal consigo vê-lo. Consigo, no entanto, ouvi-lo.
Eu não preciso enxergar, eu sei, ele está ali. E assim, finalmente me dou conta de que posso acreditar nas coisas sem vê-las. E que sentir também é uma forma de enxergar. E eu sinto, muito.
Meia hora depois e a com minha mochila na frente do peito, entro no carro rumo à Ashland. Anastatia me entrega os travesseiros e diz ‘você pode dormir confortavelmente se quiser.’ E segue dirigindo noite a dentro, de volta pra sua cidade, 600 Km distante.
Obrigada, grande espírito, por me lembrar que nunca estou nem estarei sozinha. Que tudo que se passou na minha vida até hoje foi pra me ensinar sobre a vida. Sobre a impermanência.
Obrigada por colocar pessoas tão especiais no meu caminho. Obrigada por me mostrar de tantas formas distintas que a vida é a coisa mais preciosa que há.
Uma amiga me disse - ‘volte pra São Francisco agora, nessas situações você não pode demorar mais nenhum minuto pensando no que fazer. Go get it !’
E eu dizia ‘eu estou 500 Km distante de SF.’ Dirigir tudo isso sem saber se a mochila está lá, pegar estrada à noite, cansada… Isso sem contar que teria que fazer uma conversão proibida e perigosa no meio de uma grande estrada onde fiquei parada por mais de uma hora por conta de um acidente. E acompanhada por um carro que carregava um alce morto na caçamba, com os chifres pra fora.
Decidi escutar minha intuição e seguir viagem pra Ashland, onde Anastatia me esperava, se passando por mim no telefone falando com a locadora para ver se alguém tinha encontrado a mala.
Além de tudo, tinha isso. Meu celular só tinha internet, não tinha número.
Nunca mais compro esse tipo de plano. Eu achava que poderia fazer tudo por WhatsApp, mas estava errada. De agora em diante vai ser celular com número, bip, pager, vhf, fax. Quero todos os meios de comunicação possíveis. E também esses tags de rastrear coisas (que um dia uma amiga me contou que o namorado rastreou ela, sem que ela soubesse. Colocou na bolsa como se nada fosse. Já pensou ?).
Mas isso não é assunto pra agora.
Cheguei em Ashland ainda bastante abalada, querendo estar presente ali mas com a cabeça na mochila. Ligo pra minha amiga Amanda, tão amada, que sempre que estou aqui me recebe com um sorriso enorme e um abraço apertado que só uma brasileira de coração tropical consegue dar. Amanda estava trabalhando, e diz que assim que terminar o expediente vai até o aeroporto pessoalmente verificar se alguém encontrou a mochila.
Um par de horas depois, Amanda me liga numa chamada de vídeo. A ligação falha depois das palavras “Amiga, tô aqui no aeroporto”. Aqueles segundos congelados duraram uma eternidade. Meu coração deve, inclusive, ter parado por alguns segundos. Qual notícia ela me traria ?
A imagem descongela e ela aparece segurando a mochila. Meu coração volta a bater. Grito e pulo de emoção e alegria. Obrigada, Amanda, por resgatar meu baú de tesouros.
Eu precisava então ir buscá-lo.
As coisas estavam lá.
Todas. A câmera nova, a câmera velha, os patuás, meu computador, meu diário. Tudo , tudinho. Existem pessoas honestas no mundo. Existem pessoas maravilhosas. E eu estou sempre muito protegida e bem cuidada por elas e por outras que já se foram. Eu não, nós estamos. Mas às vezes esquecemos ou custamos a acreditar. Reencontrar essa mochila não foi só sorte. Foi um desejo coletivo. Era muita coisa de valor sentimental em jogo.
O resgate da mochila foi outra missão. Porque meu voo de volta pro Brasil saia do Oregon e voltar pra São Francisco significava dirigir 6 horas e pouco pra ir mais 6 horas e pouco pra voltar. Alugar carro de novo. Combustível. Dólares. Não estou reclamando, só estou compartilhando um cansaço acumulado de tantas idas e vindas pra lá e pra cá (que são uma benção mas também são nas idas e vindas que as coisas se perdem e às vezes a alma também - a ponto da gente trocar de nome).
Poucos dias antes disso tudo acontecer, ainda na Califórnia, numa viagem com a Nuria (a dançarina dos ventos e de outros vídeos que eu posto por aqui) comentei em uma das curvas sinuosas que nessa viagem eu havia aprendido a perder coisas. Que perder coisas ao longo do caminho fazia parte. E perguntei, na curva seguinte, se ela estava preparada pra a passagem da mãe, que enfrenta com valentia e sede de vida, aos 90 anos, um tratamento intenso contra um câncer. Depois que perguntei, me arrependi, queria votar pra curva anterior e desfazer a pergunta. Me achei insensível.
E não era a primeira vez que eu fazia essa pergunta, dias antes perguntei pra minha mãe se ela estava preparada pra passagem do meu avô Nacim, que também está lutando contra um câncer, aos 97 anos.
Acho que pergunto isso porque eu não estava preparada pra perder meu pai e nem uma das minhas melhores amigas assim da noite pro dia. Então fico com essa ideia de que as doenças físicas de alguma forma “preparam” o campo pro fim.
A gente nunca tá preparada pra perder as pessoas que amamos, especialmente aquelas que nos trouxeram ao mundo. Tampouco estamos preparadas pra perdermos amigas, amigos, e falar da morte não é muito popular. A gente vive, evitando. Fugindo de qualquer coisa que encoste no fim, ou que sinalize a certeza de que toda vida acaba, que relações findam, que coisas se perdem ou mudam de lugar sem que nunca a encontremos novamente. Quando pessoas amadas se vão é como se uma parte nossa morresse também. Mas ao mesmo tempo, e como já disse antes, é como se elas ainda vivessem em nós.
Vida - Morte - Vida.
Mas voltemos pra Ashland.
Anastatia disse que me levaria até São Francisco, mas não na caminhonete barulhenta e sem ar condicionado que ela usa nessa zona rural que é o sul do Oregon. Ela pede pra avó o carro emprestado e algumas horas depois, estamos de volta na estrada, às 06:00 da manhã. Ana faz burritos pra comermos no caminho e faz dois extras - um pra avó e outro pra uma amiga. Monta um cooler com sucos e coisas geladas e ainda coloca dois travesseiros no banco de trás. Ela que começa dirigindo e sugere uma parada no monte Shasta, pra tomarmos água da fonte mais pura. Água que nasce de dentro dessa montanha vulcânica onde tudo começou.
Finalmente cheguei ao pé da montanha que antes via de longe. Enchemos três galões de água e depois entramos na água- que é gelo derretido e me fez ficar muito brava com a sensação, depois de entrar com os dois pés de uma vez sem prever o choque. Ana da risada e me diz pra respirar no desconforto. Eu não respiro, eu bufo. Depois dou risada.
Seguimos viagem até São Francisco de corpo e alma lavadas. Encontramos Amanda passeando com Chego na rua do lado da casa dela. Acho que minha alegria era tanta que desci com o carro ainda em movimento pra abraçar minha amiga. Resgato minha mochila, abraço e agradeço.
Esse reencontro foi definitivamente uma força coletiva.
Antes de pegarmos a estrada, demos uma paradinha pra vermos o mar. Caminho em uma colina, com a mochila agora nas costas, sentindo o frio da neblina e do vento no peito. O mar não aparece à distância e mesmo me aproximando da beira da colina eu mal consigo vê-lo. Consigo, no entanto, ouvi-lo.
Eu não preciso enxergar, eu sei, ele está ali. E assim, finalmente me dou conta de que posso acreditar nas coisas sem vê-las. E que sentir também é uma forma de enxergar. E eu sinto, muito.
Meia hora depois e a com minha mochila na frente do peito, entro no carro rumo à Ashland. Anastatia me entrega os travesseiros e diz ‘você pode dormir confortavelmente se quiser.’ E segue dirigindo noite a dentro, de volta pra sua cidade, 600 Km distante.
Obrigada, grande espírito, por me lembrar que nunca estou nem estarei sozinha. Que tudo que se passou na minha vida até hoje foi pra me ensinar sobre a vida. Sobre a impermanência.
Obrigada por colocar pessoas tão especiais no meu caminho. Obrigada por me mostrar de tantas formas distintas que a vida é a coisa mais preciosa que há.
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