Auto-comiseração

De tempos em tempos me vêm à cabeça a imagem de uma mulher nua, deitada em uma cama bagunçada, num quarto cheirando pecados e orgias, repleto de quadros escuros de mulheres nuas desconhecidas. Essa mesma mulher, em um conto há um tempo escrito, chamei de Mentira. Mas esta que me ocupa a mente agora não é a do conto de outrora.

Aos pés da cama, um terno jogado cheirando à fumaça de cigarro faz a mulher erguer a cabeça e procurar qualquer coisa que seja à ela conhecida, qualquer coisa que faça-a reconhecer onde está, com quem está e porquê está.
Alguns metros a diante de onde estava, a porta do banheiro semi-aberta deixava escapar o vapor de alguém que tomava um banho quente.

Meu Deus, onde é que eu vim parar?De quem são essas coisas? De quem é essa casa, quarto, cheiro e voz que cantarola?

Rapidamente levantou-se da cama, procurou pelo chão suas roupas, rastejando silenciosamente como um ser quadrúpede e, aos poucos, achou o vestido, as meias de fio rasgadas, a bota pesada de couro, um pé de brinco, a flor metálica que usava no pescoço.
Vestiu-se com tudo o que era dela,tudo que conseguiu encontrar entre aquelas taças jogadas no chão; no carpete sujo de vinho; entre as garrafas destampadas escorrendo algo que parecia sangue; debaixo das meias sujas de um homem que não era seu.
Ela temia conhece-lo mais do que pensava.
Sentada na cama, calçou as botas, ajeitou o vestido e foi embora silenciosa. Ao fechar a porta, ouviu os passos da pessoa que acabava de sair do banho e em seguida, ouviu o barulho de alguém esmurrando algo acompanhado por um urro. Mordeu os lábios de nervoso, colou as costas na parede do corredor prendendo a respiração, enquanto não chegava o elevador. E lá não ficou por mais de um minuto.
Viu ao fundo uma porta que parecia dar em uma escada e seguiu até ela em passos sutis e contidos, evitando qualquer barulho, qualquer tropeço, qualquer som que denunciasse sua tardia presença no lugar.

Meu Deus do céu, o último lugar que eu queria estar agora é aqui!

Abriu a porta com cautela, espiou pela fresta pra ver o que encontraria do outro lado e viu a escada. Olhou o andar em que estava. O número nove de bronze pregado na parede parecia que iria cair a qualquer instante, assim como o resto do prédio todo, com ela junto. Um suspiro mais forte e tudo desabaria- inclusive ela.
Inclusive ela que na noite anterior se embriagava sozinha em um bar no centro da cidade, cercada de homens mais velhos que lhe pagavam bebidas e que, entre eles, faziam apostas.
Os olhares famintos dos machos causavam-lhe repulsa e faziam-na querer sair daquele lugar sem que ninguém notasse. Mãos de desconhecidos puxavam seus ombros, seu vestido, raspavam em suas coxas e apertavam suas nádegas e ela não conseguia fazer nada. Sentia-se uma carne sangrenta e cheirosa atraindo hienas vorazes e impiedosas. Depois de tanto assédio, trocou algumas palavras com o garçom do bar e ele lhe trouxe uma garrafa de gim. Os homens com seus copos de whisky nas mãos olhavam espantados para aquela mulher que até então recuava-se aos abraços e desviava o doce rosto dos olhares lascivos daquelas feras.
Esperavam ansiosos pelo momento em que as pernas daquela mulher não mais agüentariam sustentar o peso do corpo e finalmente poderiam dela fazer um banquete.
Enquanto isso ela sugava a garrafa como se estive há dias sem beber nada, prestes a morrer de sede. Bebia e soluçava, olhava ao redor enquanto o redor olhava-a. Sentia-se anestesiada, feliz como há tempo não se sentia. Sentava sozinha na poltrona e ria, ria e ria. Ria e soluçava. Vez ou outra sentia vergonha, ou medo.
Os homens por ela passavam e, sem discrição, desejavam-na.
Ao menos por uma noite todos aqueles homens tinha o direito de tê-la nua, deliciosamente nua, entregue aos seus corpos ávidos por prazeres descomedidos. Fazia parte dos tratos e das apostas.
Anestesiada completamente, deixou-se levar. No final da noite, engolia as próprias lágrimas, afogadas no mesmo copo, no colo de um estranho.
Agora, no nono andar, pensava em como chegara ali. Com o corpo frio e as pernas trêmulas, olhava para os degraus que esperavam-na e, num ato intrépido, suspirava fundo- mais fundo do que ela mesma era capaz de agüentar.

Comentários

Anônimo disse…
Lica, adorei muito. Você é incrível.


Começo a questionar seus motivos...
um beijo
Anônimo disse…
que bom isso!
phl
Anônimo disse…
Não gostei...
Mas "um pé de brinco" soa muito bem!
Falta poesia e ritmo.
Mas é uma boa tentativa! Continue tentando!

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